terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Comércio de Marfim: Produtos, Controles e Consequências

Katarzyna Nowak, PhD, para o Fair Observer

Não é hora de sermos complacentes ou politicamente corretos, ou testemunharemos a perda do maior mamífero terrestre do planeta.

O mercado de marfim gera imensas discórdias por estar sujeito a inúmeras variáveis: interações entre homens e elefantes, artefatos e tradições culturais, comércio ilegal e a conservação de elefantes. A exploração do marfim determinará a probabilidade de extinção das populações de elefantes e afetará a subsistência humana. O marfim expressa os dilemas associados à sustentabilidade da vida selvagem. Similarmente, a perda de elefantes tem implicações no meio ambiente de algumas regiões, já que os elefantes que habitam a África subsaariana  têm signifiva influência em seu habitat como “engenheiros” do ecossistema. O marfim tem importância cultural, econômica e até politica, por sua conexão histórica com o financiamento de armas ilegais (dados presentes no Relatório da Comissão Kumleben, de 1996).


Preparação para a remoção das presas de um elefante macho adulto que foi morto enquanto incursionava em uma plantação. Fonte: Paulo Mndeme and Katarzyna Nowak
A aquisição e a comercialização de marfim estão inseridas na rede de crime organizado que atende a uma demanda insaciável da Ásia, especialmente da China. A Convenção para o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (CITES), um organismo internacional com 175 paises membros, instituiu a proibição do comércio de marfim em 1989, após duas decadas de intensa matança, mas, em seguida, permitiu a venda de estoques de marfim de países sul-africanos, como Botsuana, Namíbia, África do Sul e Zimbábue. Essas vendas geraram uma controvérsia: elas teriam estimulado o aumento da demanda por marfim e, consequentemente, a caça ilegal? Uma resposta clara ainda não foi dada, mas, desde 2005, houve um dramático incremento no tráfico ilegal de marfim. Esse incremento é parcialmente atribuído à venda de estoques, pelos que são contra o comércio, e pela proibição do comércio, pelos que são a favor.

As questões são complexas e difíceis de desembaraçar. Na teoria, se o comércio fosse legalizado e controlado, os fundos gerados seriam usados para a conservação dos elefantes. Mas poderia a demanda atual ser suprida pela mortalidade natural e pelo “controle de animais problemáticos” – fontes legais de marfim – ou seria necessária uma quantidade maior? Se os elefantes estão sendo “consumidos”, quem irá regularizar o fornecimento, impor limites de números e, o mais premente, se beneficiar diretamente desse mercado? Populações locais que convivem com elefantes podem precisar de um retorno dessa coexistência para obter um maior nível de tolerância, ao passo que o termo  “fundos para conservação” sugere um retorno direto aos cofres governamentais (ou para-estatais).

Não está claro o que mudou desde a proibição de 1989  para acreditarmos que podemos controlar o comércio de marfim, especialmente quando os sindicatos do crime estão cada vez mais sofisticados. Basear decisões relativas à conservação no que possa ser menos lucrativo para a Máfia, a Tríade (máfia chinesa) e a Yakuza (máfia japonesa), significa que entramos numa era de preservação e contra o crime organizado, contando com as forças de mercado. Será ingênua a visão de que uma abordagem de mercado a favor da conservação pode conter um boom do mercado negro? Que exemplos reais existem no mundo de tais mercados salvando espécies?

Em comparação com as mais de 33,000 espécies que a CITES regula, é desproporcional a quantidade de tempo e energia que é dispendida, em cada Conferência dos Partidos (CoP), com assuntos relativos ao mercado de marfim. O “Debate do Mercado de Marfim” existe devido a visões polarizadas entre os países signatários. Algumas questões fundamentais continuam sem solução, incluindo decisões tomadas por países como a Inglaterra e os Estados Unidos, onde não existem elefantes e, portanto, nenhuma experiência em conflitos entre homens e elefantes. Outra questão é a listagem de uma única espécie, no Apêndice I (proibição total do comércio internacional) e no Apêndice II (comércio restrito), para permitir aos países do sul da África um comércio controlado. Há uma falta de transparência e de participação no processo de seleção dos membros do Painel de Especialistas e de participantes de reuniões fechadas no CoPs, como também de perguntas responsáveis  sobre quem fornece os dados que contribuem para as decisões dos usuários finais (funcionários do governo, assessores contratados ou cientistas com interesses próprios). As decisões são tomadas por cada país isoladamente, a despeito da mobilidade das populações de elefantes através de países vizinhos com diferentes paradigmas no tratamento de elefantes. Há falta de uma série de providências concretas e de confiabilidade na determinação das fontes de marfim –  mortes naturais, controles populacionais ou caça ilegal e confisco. Finalmente, o acompanhamento de registros de adesão às regras do CITES por um pais comprador e as justificativas de um país vendedor sobre a necessidade de fundos e a verificação do seu uso não são sistematicamente avaliados.

Estas são questões multifacetadas que, futuramente, ficarão mais complicadas, pelo fato de que não é possível fazer generalizações simples sobre a África a respeito do status de elefantes e as causas do aumento ou do declínio de suas populações. Isso levou alguns cientistas, como Rosaleen Duffy, autora de Nature Crime (2011), a argumentar contra uma solução tipo “todos no mesmo saco” e, em vez disso, ser a favor de uma divisão das listagens, que leva em conta políticas específicas para cada país, regimes de manutenção e conquistas na área de conservação. Uma avaliação de cada país, relacionada ao processo de tomada de decisão do CITES, considera a população de elefantes de cada país como distinta e, consequentemente, desconsidera a movimentação de elefantes por países vizinhos, restringindo, assim, a necessidade de se ver as populações de elefantes como metapopulações que se espalham por diversos países. O professor Rudi van Aarde, da Universidade de Pretória, e Tim Jackson, editor cientifico da National Geographic, acreditam que a mobilidade dos elefantes necessita de uma abordagem transnacional, para evitar o problema da concentração de um grande número de indivíduos num mesmo local, o que frequentemente leva a um aumento dos conflitos com humanos.

O chamado “excesso de elefantes” em países do sul da África deve ser interpretado dentro de um contexto no qual a extensão do habitat dos elefantes encolheu e as populações foram reduzidas em mais de 50%, desde a década de 1970. As populações de elefantes jamais recuperarão aquele nível em que estavam antes da epidêmica caça ilegal dos anos 1970, quando a África perdeu, no mínimo, 500.000 elefantes. Todavia, os defensores do comércio John Frederick Walker e Daniel Stiles argumentam que 40 anos não são suficientes para se discutir uma tendência para as populações de elefantes, apesar de que 40 anos não equivalem sequer aos anos de vida de um só elefante.

Além disso, somos confrontados com uma segunda questão, possivelmente mais urgente do que aquela relativa ao comércio somente: existe espaço para elefantes na África? Hoje, para cada 2.000 pessoas na África, existe menos de um elefante. Enquanto as populações de elefantes diminuíram catastroficamente até o final de 1980, a população humana quase dobrou, e a China se tornou o primeiro país a atingir um bilhão de habitantes, em 1980. A recuperação das populações de elefantes coincide com a expansão das populações humanas e suas atividades de subsistência nos habitats antigos dos elefantes, eliminando a capacidade das populações de se recuperarem, sem uma direta e quase sempre perigosa interação humano-elefante. O conflito entre humanos e elefantes tem se tornado um argumento para os mais fracos e despossuídos, nos debates políticos abrangendo a posse e o uso planejado da terra e o poder político. O conflito entre humanos e elefantes também tem sido um mecanismo potencialmente explorado para aumentar os estoques de marfim. A expansão da população humana e uma classe média com maior poder aquisitivo significam não só um aumento na demanda pela tradicional medicina tribal (que tem um enorme impacto sobre rinocerontes, tigres e ursos), mas também por bens luxuosos, como carnes de animais silvestres(por usuários urbanos) e marfim. Políticas públicas, e não as forças de mercado, devem ser direcionadas às  necessidades farmacológicas humanas, avisa o Professor Richard Sullivan, num relatório da EMBO, de 2010. Pode uma política pública atuar, da mesma maneira, na regulamentação de valores arcaicos e estéticos humanos?

A comunidade conservacionista tem sido, por enquanto, mantida em silêncio, acusada de não se importar com os pobres da zona rural e de superdimensionar a importância de espécies não humanas, oferecendo pouco suporte financeiro à administração da vida selvagem e para os sem terra. Por exemplo, Duffy escreve que “o modo pelo qual os povos ocidentais percebem os elefantes – uma visão romântica – demonstra que não é possível vislumbrar uma possibilidade de convivência com eles”. Suas declarações representam outra perspectiva política – a visão de um cientista ocidental preocupado com os despossuídos – e são tão igualmente corruptas intelectualmente como as de ativistas do bem -estar animal que menosprezam as necessidades humanas. Muitos financiamentos e esforços de biólogos de campo são canalizados para avaliar e mitigar os conflitos entre humanos e elefantes. Exemplos disso são o famoso Projeto Pimenta de Elefante (Elephant Pepper Project) no Zimbábue, e
as cercas de colmeias de abelha, no Quênia, (beehive fences in Kenya), projetos que testaram a eficácia das pimentas chilli e das colmeias como inibidoras de elefantes. Mais de 15% dos projetos financiados pelo US Fish and Wildlife African Elephant Conservation Fund (Fundo Americano da Vida Selvagem e Aquática para a Conservação do Elefante Africano) nos últimos cinco anos (2006 - 2010) foram para projetos com um componente explícito de conflito humano-elefante. Esses esforços, que representam o quanto estamos acertando na questão da conservação, não são mencionados no livro de Duffy “Como Estamos Errando na Conservação” (How We’re Getting Conservation Wrong).

De acordo com Duffy, a proibição do mercado de marfim “ castiga” os países em desenvolvimento, fazendo os pobres ficarem mais pobres. Isso presume que os fundos levantados com a venda legal do marfim irão beneficiar diretamente as comunidades que vivem lado a lado com os elefantes; que esses fundos serão distribuídos igualmente, ou, pelo menos, equitativamente; e que pelo menos alguma renda irá para a mitigação do conflito humano-elefante e a restauração de corredores verdes (particularmente se a melhora na conectividade entre habitats vier a ser, a longo prazo,  uma melhor estratégia para diminuir o conflito humano- elefante do que os métodos de inibição).  Duffy escreve que a mídia internacional e ONGs globais “ demonizam aldeões como sendo gananciosos ou são condescendentes por eles serem pobres”, quando o assunto é a caça ilegal. Ela está possivelmente correta quando diz que as ações anticaça ilegal miram o sintoma (caçadores) em vez da causa (demanda global e seus objetivos econômicos), mas as ONGs de conservação não criaram esses mercados globalizados.

Quando foi que a atenuação da pobreza virou a prioridade das ONGs de conservação? Não existem organizações maiores – Usaid, Oxfam, ONU – com mais experiência nisso? São os caçadores ilegais de marfim realmente um sintoma de pobreza ou de uma demanda global e, consequentemente, a chance de fazer dinheiro fácil? Caçadores, em Moçambique, mataram recentemente, de helicóptero, 52 elefantes, o que demonstra que estavam mais bem equipados que os guardas florestais no solo, descartando a imagem dos caçadores como sendo “ pobres aldeões”.

A instalação de corredores – que ajudariam a aliviar o conflito humano-elefante, ao promover a locomoção dos elefantes entre habitats apropriados – foi recentemente classificada como “apropriação de terra”,  num artigo escrito por Mara Goldman nos Anais da Associação dos Geógrafos Americanos. Por que estradas que fazem um elo entre as populações de vida selvagem são menos importantes do que aquelas que ligam as populações humanas? estradas que atravessam áreas selvagens não seriam “apropriações ilegais de terra”? A terra – e muitos dos seus usos e serviços – está destinada somente para o benefício humano?

Autores como Duffy e Goldman estão pedindo aos conservacionistas que concordem com a perda de espécies para evitar acusações de neocolonialismo. Essas questões – altamente políticas – deixam pouco espaço para a defesa de aspectos centrados na ciência e na ecologia. Se a discussão é realmente sobre se o marfim é um “recurso” econômico para os países, será a proibição a resposta? Se for assim, então talvez a verdadeira questão seja se o lado da demanda pode ser afetado num prazo necessário. Essa é uma questão de justiça, normas distributivas e equilíbrio moral. Surgem as perguntas: por que as pessoas querem marfim? Por que algumas “mercadorias” não se tornaram arcaicas na Ásia e no resto do mundo?

Investigações sobre o mercado e a regulamentação de outros troféus animais, como dentes de rinoceronte, cascos de tartaruga, xales tibetanos de shahtoosh (proveniente do antílope) e partes de animais usadas na tradicional medicina chinesa – ossos de tigre, bílis de urso e chifres de rinoceronte – podem informar o Debate Sobre o Mercado de Marfim. Entretanto, as possíveis ligações existentes no comércio de diversas espécies não foram devidamente pesquisadas. Por exemplo, a possibilidade da estocagem de marfim encorajar outras estocagens, como as de partes de tigres e ursos provenientes de fazendas ou de populações em cativeiro,  não foi ainda investigada. Pesquisadores de tigres, preocupados com a competição entre “fazendeiros” e “negociantes” (i.e., caçadores ilegais), duvidam de que o comércio legal de marfim possa impedir o mercado negro. Caçadores ilegais podem vender partes de tigre em mercados legais por preços inferiores aos dos fazendeiros, devido ao alto custo da produção em fazendas (como também é o custo de obter, transportar e manter o marfim em local seguro). Por outro lado, o custo de caçar ilegalmente um tigre ou um elefante na natureza é relativamente baixo, mesmo com o risco de ser apanhado. A crença de  Walker e Stiles de que as forças do mercado poderiam controlar o comércio de marfim e a ideia de que, com o comércio legal, não haveria compradores no mercado negro, independentemente da corrupção e da fraca imposição da lei, não parece estar fundamentada no que já foi observado com outras espécies. Isso quer dizer que não foi percebida uma redução na demanda de partes de animais devido às “forças de mercado” (como, por exemplo, a bílis de urso). A legalização do comércio de tigres de fazenda reabre um mercado que passou por um intenso declínio na China. Que forças garantiriam que um comércio legal de marfim seria sustentável e controlado, particularmente quando o comércio ilegal de marfim está prosperando em partes da China? (
illegal ivory trade is thriving in parts of China?)

Se o mercado de marfim diminuísse a caça ilegal e levasse a uma redução da morte de elefantes, então o assunto seria simples, e a questão do mercado de marfim ser ou não ético não seria um argumento para alguns, incluindo Peter Singer, o primeiro filósofo dos direitos dos animais. Mas, enquanto discutimos as questões do relacionamento entre o mercado de marfim e a caça ilegal e debatemos os detalhes, estamos perdendo milhares de elefantes. Eu já vi o “fracasso na ação, enquanto reunimos mais dados” como uma questão ética. Isso de novo deixa de lado uma questão muito mais ética e fundamental: “Devem os elefantes ser uma mercadoria?”

Como diz Fred Nelson, Diretor da Maliasili Initiatives, instituição sem fins lucrativos e baseada nos EUA, “todos os debates da CITES são agradáveis, nos artigos publicados, mas,  provavelmente, não são suficientemente críticos quanto à situação real, que depende mais do que cada país está fazendo individualmente em relação ao cumprimento da lei, ao compartilhamento dos benefícios com as comunidades locais e à administração dos recursos naturais em geral”. O que pode ser crítico para esse gerenciamento, e algo que o movimento conservacionista ainda não explorou o suficiente, é a restauração da relação entre o homem e a natureza selvagem. Talvez o que estejamos precisando é de celebrarmos a natureza e nos lembrarmos da nossa interdependência com ela, estimulando o desenvolvimento do meio ambiente, em vez de fazer cálices de chifre de rinoceronte e capas de celulares de marfim, o símbolo de status dos novos-ricos – e de todo mundo também.

Agradeço a Samuel Wasser, Phyllis Lee, Richard Sullivan e William Grassie, por seus comentários inestimáveis.


Link para o artigo original.

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