Publicado por Joyce Poole e Petter Granli, da ElephantVoices, em “Uma Voz para os Elefantes”, Coluna da National Geographic, em 5 de Fevereiro de 2013.
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Uma foto de identificação de Goodness, matriarca morta por flechadas por causa de suas presas. Foto: ElephantVoices. |
Banhados pela luz da lua, esperávamos deitados pelo alarme, que deveria tocar às 4:30h, quando teríamos que nos levantar. O Rift Valley se espraiava sereno e mágico abaixo de nós. Um momento de tranquilidade. teríamos um longo dia pela frente, que Começaria com três horas e meia de estrada, de Il Masin, ao sul dos Ngong Hills, através do Rift Valley, até Ewaso Nyiro, em Narok, para chegarmos para a reunião das 9h.
Ainda bem que o tráfego estava tranquilo àquela hora tão cedo, dando algum espaço em nossas mentes para que vislumbrássemos a reunião da qual iríamos participar. Estávamos temerosos em pensar quantos elefantes estariam na lista final. Nossa previsão era que fossem 150 indivíduos, talvez alguns a mais ou alguns a menos. Qualquer que fosse o número, sabíamos que isso representaria apenas as carcaças que foram encontradas. Havia outros lá fora, escondidos por densa vegetação, em lugares sem patrulhamento, cujas mortes jamais seriam apuradas. Quantos corpos e ossos de machos ainda estariam lá? Quantas fêmeas? Quantos filhotes teriam sucumbido por causa da fome e do sofrimento causado pela morte de suas mães? Quantos deles no mato e quantos na lista daquele dia eram elefantes que tínhamos minuciosamente fotografado, registrado e descrito em nosso banco de dados, mas cujas mortes jamais iríamos registrar?
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Dois dias depois, uma fêmea adulta foi encontrada assassinada ali perto, e o macho adulto m0243 foi visto tomando conta desse filhote de 6 anos. Foto: ElephantVoices. |
“Não podíamos usar a palavra ‘harmonizar’ sem chorarmos um pouco.”
O objetivo do dia não era nada bonito. Iríamos nos encontrar com outras pessoas integrantes do processo, na sede do Kenya Wildlife Service (KWS), no condado de Narok, para harmonizarmos as mortes de elefantes de 2012 que cada um de nós havia coletado do mundialmente famoso ecossistema de Maasai Mara. Não podíamos usar a palavra harmonizar sem chorarmos um pouco. Sincronizar teria sido um termo melhor, já que a tarefa que tínhamos pela frente não parecia nem um pouco harmoniosa ou agradável.
Os participantes foram chamados com alguma antecedência e vieram de todo o Maasai Mara. Havia representantes do KWS, das Câmaras Municipais de Narok e Transmara, das unidades de conservação, além de ONGs e cientistas, todos reunidos numa pequena sala. Fomos munidos de nossos mortos — em papéis, em fotografias, em arquivos, em pastas, em planilhas e em nosso banco de dados. Muitos deles também estavam em nossos corações, como indivíduos que havíamos conhecido. Lekuta e Tenebo, dois machos maduros, cujos nomes foram dados, respectivamente, por patrulheiros das unidades de conservação Olare Orok e Siana, estavam na lista. A linda matriarca Goodness (Bondade) cujo nome foi dado por Derrick Nabaala, guia da unidade de conservação Mara Naboisho, por causa de sua natureza tão gentil, também estava na lista. Todos os três tinham sido mortos por flechadas por causa de suas presas.
O dia todo se passou com a discussão em torno das georreferências dos locais dos cemitérios dos elefantes, das presas que foram recuperadas e das que foram perdidas e das horríveis mortes individuais, por tiros, flechadas e setas envenenadas. Esclarecemos quais morreram de morte natural, quais foram mortos em conflitos com pessoas por causa dos minguantes recursos, ou os que foram mortos por causa de suas presas de marfim. Haviam todos sido georreferenciados? Sem um ponto de GPS, eles não poderiam ser verificados e contados entre os mortos. Acrescentamos nossas “novas” vítimas e riscamos os que estavam contados duas vezes na lista.
“Vejam, vejam, vejam o que está acontecendo com nossos elefantes! PAREM com a matança! PAREM com o mercado de marfim!”
Trabalhamos até o fim do dia, quando tomamos o caminho de casa. outros continuaram durante o dia seguinte, até que cada registro tivesse sido checado e estivesse de acordo. Planejado para ocorrer a cada trimestre, estávamos esperando por esse processo. Uma vez que os dados estejam organizados, podemos ir para a imprensa com os horríveis números, podemos postá-los no Facebook, podemos gritar para o mundo com os difíceis fatos, a incontestável evidência: “Vejam, vejam, vejam o que está acontecendo com nossos elefantes! PAREM com a matança! PAREM com o comércio de marfim!”
Enquanto isso, o registro de 2013 começou, e a matança continua: seis em Janeiro, em apenas uma unidade de conservação do Mara. Dizem-nos que muitas pessoas na China acham que os elefantes deixam cair suas presas, como caem as armações dos cervídeos. A repulsiva mensagem de que cada presa custa uma vida não chegou a esses compradores. Temos que fazer com que a compra de marfim, assim como o uso de casacos de pele de felinos malhados, seja algo a ser desprezado.
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Usando um colar com GPS que permite que pesquisadores monitorem seus movimentos, Omondi faz uma pausa para escutar. Assim como muitos machos do Mara, ele tem um ferimento supurado, provocado por uma flecha. Foto: ElephantVoices.
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Enquanto existir um mercado para o marfim, ele terá valor. Enquanto ele tiver valor, será um recurso controlado por pessoas que têm poder. O comércio de marfim no Quênia, assim como em qualquer outro local, é um negócio corrupto e sujo. Em todos os lugares a que vamos, escutamos o mesmo refrão: “É sempre assim em ano de eleição”, ou “não melhorará até que ocorram as eleições”. As pessoas insinuam que os políticos estão engajados no mercado de marfim para levantar verba para suas campanhas. Pode ser verdade, mas a escala do problema é muito, muito maior que isso, e não temos ilusões de que a situação ficará melhor depois das eleições do começo de Março, a não ser que ajamos solidariamente e falemos como uma só voz.
O que significa exatamente "harmonizar" a mortalidade dos elefantes, e por que devemos fazer isso? A simples resposta é que, com tantas pessoas engajadas em conservação de elefantes no Quênia, temos que organizar esses números, de modo que possamos documentar o que está acontecendo e reagir de modo apropriado. Na realidade, a situação é um pouco mais complexa.
Para explicar, é necessário um pouco de história. Até 1990, os elefantes Africanos estavam no Apêndice II da Convenção do Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (Convention on International Trade in Endangered Species - CITES), que permitia a venda de marfim pelos países que tinham elefantes, sob um sistema de cotas. Era um sistema tão aberto a abusos que o Leste da África perdeu 85% de seus elefantes em 15 anos, e a população de elefantes no continente caiu de 1,3 milhão para 600.000.
Em 1989, os Participantes da CITES votaram por colocar os elefantes Africanos no Apêndice I, decretando, por meio disso, uma proibição do comércio internacional de marfim. O voto certamente não foi unânime, e muitos países do sul da África e seus parceiros de negócios foram contra.
Nos dez anos que se seguiram, viu-se tanto uma lenta recuperação das populações desses mamíferos de longa vida, como também o desgaste da proibição. Muitas populações de elefantes dos países do sul da África foram “rebaixadas” para o Apêndice II e as chamadas vendas “únicas” de seus estoques de marfim foram permitidas para o Japão e para a China.
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Elefantes bebês brincando na segurança relativa das unidades de conservação. Foto: ElephantVoices. |
Em 2000, em resposta a preocupações de que essas vendas estimulariam o mercado, os Participantes da CITES iniciaram um programa chamado Monitoramento da Matança Ilegal de Elefantes (Monitoring the Illegal Killing of Elephants), ou MIKE, para ficar mais curto. O programa MIKE envolve a coleta de dados específicos da mortalidade de elefantes de umas 52 “localidades MIKE” ou de populações de elefantes monitorados através da África, tendo como um de seus objetivos principais monitorar onde e como as decisões tomadas pela CITES possam estar impactando os níveis de caça ilegal na região.
Embora esses dados tenham fornecido indicadores valiosos sobre as tendências da caça ilegal, também foram altamente criticados por não terem sido capazes de comprovar, ou não, alguma causalidade entre as vendas de estoques de marfim e os níveis de caça ilegal. Já em 2007, havia indicadores de que nem tudo estava bem, mas, conforme o número de elefantes caçados continuou a subir, houve um grande desentendimento sobre se os “rebaixamentos” na lista e as vendas dos estoques de marfim eram a causa, ou se a “proibição” (fragilizada por eles) não estava mais funcionando. No final de 2012, a situação da caça ilegal ficou completamente fora de controle, e o MIKE era ainda incapaz de concluir se as vendas de marfim eram a causa!
Houve outras questões no MIKE que nos perturbaram. Na medida em que o MIKE forneceu fatos e números para as autoridades, em alguns países ele pode também ter levado a uma demora em soar o alarme sobre a matança de elefantes por causa do marfim.
O Quênia tem duas localidades oficiais no MIKE: Tsavo e Samburu/Laikipia. Além disso, a presença de projetos com elefantes no Amboseli e em Maasai Mara também tem permitido registros detalhados de mortalidade coletados de acordo com os critérios do MIKE.
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Uma família com órfãos, liderada por uma fêmea jovem, encontra na estrada um bom lugar para um banho de lama. Foto: ElephantVoices.
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Cientistas amam fatos e números, assim como os oficiais do governo. Fatos e números significam informação, e o controle dessas informações significa poder. Aqueles que coletam dados frequentemente querem usá-los para seus próprios propósitos e podem ser relutantes em compartilhá-los. Indivíduos e instituições podem também esconder números porque não gostam do que eles revelam e podem, por essa razão, querer controlar o acesso a eles.
No início dos anos 1990, quando Joyce encabeçava o Programa de Elefantes para o KWS (Serviço para a Vida Selvagem do Quênia), ela estabeleceu um Banco de Dados de Mortalidade de Elefantes, para ajudar o KWS a monitorar seus esforços anticaça, assim como o sucesso da proibição do comércio de marfim que tinha sido decretado pela CITES. É esse banco de dados que agora abriga os dados do MIKE e forma uma importante fonte de informação sobre o nível da caça ilegal de elefantes no país.
Como resultado do programa MIKE, algumas informações do Banco de Dados de Mortalidade do KWS são agora de interesse de uma audiência mais ampla. De fato, o mundo todo, subitamente, tem debatido esses dados. De particular interesse para o mundo todo, em geral, é o “PIKE” — ou o percentual de elefantes assassinados ilegalmente em relação ao número total de mortes.
Nos últimos seis anos, o número de mortes e, particularmente, o PIKE, têm crescido constantemente (acreditamos que devido a decisões tomadas na CITES). Os números não têm sido bonitos, e é preciso dizer que algumas pessoas têm procurado tanto fazer discursos de fachada quanto esconder os fatos para mantê-los longe do público. Cientistas têm sido intimidados por terem diferenças de opiniões sobre os números. Há rumores de que, por falarem abertamente sobre isso, pessoas têm tido seus financiamentos bloqueados, sócios honorários têm sido despojados de seus títulos e alguns têm sido acusados de conluio com caçadores. Qualquer que seja a verdade, tem florescido um clima de suspeitas, de sigilo, causando frustração e muita raiva, mesmo entre colegas e amigos.
“Ainda bem que, nas últimas semanas, temos visto uma importante mudança de atitude no Quênia.”
Ainda bem que, nas últimas semanas, temos visto uma importante mudança de atitude no Quênia. A imprensa, de repente, está realmente bem informada, “dando nomes” e pressionando para que se faça algo. O Primeiro- Ministro, Raila Odinga, prometeu agir, e todos os sinais indicam que cabeças rolarão. O novo Diretor do Serviço para a Vida Selvagem do Quênia (Kenya Wildlife Service) está prometendo transparência, e isso está se estendendo a seus colaboradores, e encontros de harmonização estão acontecendo em todo o país.
Mais do que qualquer país do mundo, o Quênia é o epicentro do conhecimento sobre elefantes. Temos um time de conservacionistas internacionalmente reconhecido e autoridades em elefantes, experiência em conservação, instituições, aplicação de políticas e um público alarmado e desejoso de diminuir a matança. Enquanto escrevemos, membros de um novo grupo, Quenianos Unidos contra a Caça Ilegal (Kenyans United Against Poaching), marcham pelas ruas de Mombasa, cantando:
“Se não há vida selvagem – Não há turismo,
Sem turismo – Não há trabalho,
Sem turismo – Não há economia,
Sem turismo – Não se vislumbra 2030.
Temos que acabar com a caça ilegal agora.
A China tem que Acabar com o Comércio de Marfim.”
Os elefantes são um recurso do Quênia e de seu povo e, enquanto aguardamos os resultados dos números oficiais de mortalidade de elefantes em 2012, temos a esperança de que o “Time Quênia” trabalhará junto, em harmonia, para proteger seus elefantes.
Joyce Poole estuda elefantes desde 1975, tem PhD em comportamento de elefantes pela Universidade de Cambridge e teve papel fundamental na obtenção da proibição do comércio de marfim, em 1989. Ela é uma autoridade mundial em comportamento social, reprodutivo, comunicativo e cognitivo e dedicou sua vida à conservação e bem-estar dos elefantes. Poole encabeçou o Programa de Elefantes do Serviço para a Vida Selvagem do Quênia (Kenya Wildlife Service) de 1990 a 1994 e foi responsável pela conservação e manutenção de elefantes em todo o Quênia. É autora de numerosos artigos científicos, de dois livros e a autora principal do “The Elephant Charter”. Poole e seu marido, Petter Granli, fundaram e dirigem a ElephantVoices. Em 2011, deram início a um projeto contínuo de conservação no Maasai Mara. Leia mais em www.elephantvoices.org.
Petter Granli é um economista com significativa experiência corporativa em gerenciamento e comunicação. Seu trabalho com conservação de vida selvagem começou em1998, como um dos fundadores da premiada empresa de ecoturismo norueguesa Basecamp Explorer, que dirigiu por três anos. Ali deu início ao Projeto de Conservação de Guepardos em Maasai Mara e a diversos trabalhos ecológicos colaborativos envolvendo os Maasai. Em 2004, enquanto trabalhava com Joyce Poole, começou um projeto de mitigação de conflitos entre humanos e elefantes na região do Amboseli. Com Joyce, fundou e dirige a ElephantVoices. Leia mais em www.elephantvoices.org.
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